Fazendo justiça a um grande Fighting Game
02/11/2022Pergunte para qualquer jogador casual desse mundão do entretenimento eletrônico sobre Dead or Alive e a chance de a pessoa ter na mente dela que a franquia é só fan service tridimensional barato é altíssima. A coisa é tão grave com relação a Dead or Alive que mesmo dentro da própria comunidade de fighting games existe essa mesma concepção.
Estou aqui hoje para respeitosamente dizer que essas pessoas estão erradas. Quem gosta da franquia, ou minimamente se interessou em obter informações mais técnicas acerca de seus jogos enquanto jogo de luta, além de conhecer bem seus predicados também compreende que a sensualidade é parte indivisível dela.
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Esse é o primeiro de dois textos que quero escrever “em defesa” de Dead or Alive. Já que o Diogo me dá total liberdade sobre o que escrever, posso fazer esse tipo de coisa que potencialmente ninguém lê.
Nesse texto tentarei mostrar o porquê Dead or Alive não é uma franquia de fighting game qualquer, desde a sua concepção. Entrarei em detalhes mais técnicos no que cerne a mecânicas de jogo, mas tentarei fazê-lo da forma mais didática e simplificada que eu conseguir.
No texto subsequente, me focarei no inquestionável melhor jogo da franquia, Dead or Alive 5. Uma verdadeira joia dos fighting games e ainda assim tratada como certo desdém.
Um pouco de história gamer
Após um período de bons lucros da Tecmo ao final dos anos 80 no ramo de jogos (dentro do que é possível para o mercado japonês nesse período) a Tecmo estava a amargar maus resultados financeiros do início da década seguinte.
É nesse cenário interno que um novo e ambicioso game designer, com somente um projeto em seu currículo, conseguiu audaciosamente a oportunidade para criar uma equipe e liberdade criativa para desenvolver um jogo que ajudasse a alavancar novamente a Tecmo.
Esse game designer em questão era o hoje conhecido (talvez infame?) Tomonobu Itagaki. O projeto em seu currículo era a versão para SNES de Tecmo Super Bowl, jogo esse em que trabalhou como engenheiro gráfico sob orientação pessoal de ninguém menos que Yoshiaki Inose, responsável por um dos maiores hits da Tecmo desde sempre, Ninja Gaiden (o clássico).
Inose também foi o responsável por Rygar, uma delícia de jogo. Infelizmente ninguém lembra de Rygar quando o assunto é o Inose, um verdadeiro absurdo!
O “vai ou racha” da Tecmo
Dada a popularidade dos jogos de luta do período, Itagaki e sua recém-constituída equipe chamada Team Ninja, optaram pelo desenvolvimento de um jogo do gênero em questão.
Itagaki tinha claro em sua mente que o jogo teria de ser tridimensional, nos moldes de Virtua Fighter. Aliás, Itagaki se interessou tanto em Virtua Fighter e em sua tecnologia que criou bons vínculos com a SEGA e conseguiu um contrato que o permitiria desenvolver seu jogo de luta na mesma placa de arcades do game da SEGA, a Sega Model 2.
Definido gênero de jogo e tecnologia, Itagaki e a Team Ninja deram início ao desenvolvimento de seu jogo de luta tridimensional. O nome do jogo seria uma alusão ao momento em que a Tecmo estava vivendo, bem como do futuro do próprio Itagaki dentro da empresa. Era uma questão de vida ou morte, Dead or Alive.
Um nipônico sucesso
Eis que Dead or Alive foi lançado nos fliperamas em 1996 e felizmente o projeto de Itagaki conseguiu cumprir seu intento. O jogo foi um sucesso nos arcades japoneses (o mercado de arcades do Japão nesse período ainda era enorme).
A pergunta principal aqui é: Como mais um jogo de luta, em um mercado com tantas opções naquele período, conseguiu se destacar da multidão?
Dead or Alive trouxe no mínimo dois elementos inéditos, muito bem executados, para um jogo de luta tridimensional: uma mecânica de jogo inovadora, que incentiva ações e reações velozes ao logo de toda a luta, e sensualidade (e aqui uso a palavra em um sentido mais amplo do que possa parecer).
Um ano depois, o jogo foi portado para o Sega Saturn. Essa era uma escolha óbvia, uma vez que o jogo para fliperamas tinha sido desenvolvido na Sega Model 2. Uma versão para o PlayStation também foi desenvolvida e disponibilizada no console da Sony no ano de 1998.
Dead or Alive ainda ganharia uma nova versão para arcades, baseada no jogo desenvolvido para o Sony PlayStation. A versão do game para PlayStation é severamente diferente da original, tendo sido refeita do zero, o que possivelmente justificou o lançamento da nova máquina dos fliperamas.
Nos EUA o jogo também obteve algum sucesso e reconhecimento, mas muito mais pela versão de PlayStation (ironicamente inferior). O mercado de arcades no ocidente não tinha o mesmo apelo que no Japão e o Sega Saturn vendeu muito pouco do lado de cá do mundo. Ademais, em 1998 foi lançado também para o PlayStation a terceira versão de Tekken, considerado até hoje um marco supremo no mundo dos fighting games (o jogo está no Top 10 jogos mais vendidos para o console).
Triangle System: O segredo do sucesso
Comentei mais acima que um dos pontos principais responsáveis pelo sucesso de Dead or Alive foi a mecânica de jogo, que incentivava ágeis ações e reações em tempo real ao longo da luta. Essa mecânica ficou conhecida como “Triangle System” e eu tentarei aqui, da melhor e mais didática maneira possível, explicar o como ela funciona e os motivos pelos quais foi tão revolucionária para a época.
Ressalto que tudo o que falarei com relação às mecânicas de jogo possuem dados técnicos (é claro), mas também uma visão pessoal sobre o assunto.
No começo, os jogos de luta tinham duas ações básicas: atacar e defender. A defesa se sobrepuja ao ataque, no sentido de que uma defesa assertiva não permite que o ataque do oponente lhe acerte. Ao mesmo tempo, enquanto em estado de defesa não é possível revidar, com isso toda a vantagem está com o atacante enquanto for possível manter a pressão ofensiva e, eventualmente, quebrar a defesa.
Caso a defesa do oponente não seja quebrada, ambos os jogadores eventualmente voltam a um estado neutro, em que nenhum dos dois está em um ciclo de ataque ou defesa.
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O movimento de arremesso foi introduzido posteriormente nos jogos de luta, o que possibilita que um atacante possa sobrepujar a defesa do oponente, aumentando o roll de opções tanto para o atacante, quanto para o defensor, que pode “ler” que o oponente fará um avanço para um arremesso e atacá-lo efetivamente.
Dead or Alive traz esses elementos, mas joga um tempero extra chamado Hold. O Hold é um movimento que é ao mesmo tempo ofensivo e defensivo, mas de alto risco x recompensa. Ele permite que um jogador, mesmo em situação defensiva, segure um ataque o oponente (daí o nome Hold) e execute um contra-ataque poderoso, que tira muita vida.
Ao executar o movimento de Hold seu personagem fica sem a possibilidade de atacar ou defender momentaneamente, ou seja, realizar o Hold na hora errada deixa quem o aplicou completamente aberto para receber ataques.
A dinâmica entre atacante e defensor muda totalmente em Dead or Alive. O defensor pode, efetivamente, punir um atacante que se utilize sempre dos mesmos ataques e combos, bem como o oponente pode usar isso a seu favor e colocar em seu jogo ofensivo “baits” para que o oponente use um Hold no vazio e fique completamente de guarda aberta.
O jogo ganha muito em velocidade de decisão e em momentum. O sistema de Hold traz aos jogos de luta uma dinâmica única, trazendo maior espetáculo para quem assiste, bem como tensão e dinamismo para quem joga.
O Triangle System basicamente se trata da relação entre Ataques Regulares (Strikes), Arremessos (Throws) e Holds. Os ataques regulares ganham de arremessos se executados ao mesmo tempo, mas perdem para um Hold. Os arremessos ganham dos Holds mas perdem para Ataques regulares. Um Hold ganha dos Ataques regulares e perdem dos Arremessos.
Esse sistema continuará a ser o coração de todos os jogos seguintes da franquia, mas aliada a outras mecânicas e com o Hold expandido exponencialmente. Não vou entrar em muitos detalhes, pois a intenção aqui e agora é a explicação geral sobre como o Triangle System funciona, bem como o motivo de ele ser o motivo central pelo dinamismo único visto em Dead or Alive em seu lançamento.
Já havia jogos de luta na época em que alguns personagens possuíam movimentos de contra-ataques, mas a dinâmica em Dead or Alive é diferente. Ademais, o Hold é universal, ou seja, funciona da mesma forma para todos e todos os personagens o possuem.
Um jogo sexy sem ser vulgar
Dizer que Dead or Alive é um jogo sexy vai além dos peitos saltitantes. Sim, eles estão lá desde o primeiro jogo da franquia. E sim, eles com certeza ajudaram com que o jogo fosse mais notado por todo mundo. Também sim, o Itagaki sabia disso e fez de propósito.
Dead or Alive é um jogo sexy de se olhar. O fluxo das batalhas, tão mais rápidas e furiosas que seus concorrentes da época, é hipnótico. O design dos personagens é extremamente atraente. A trilha sonora chama a atenção com seu rock energético e que combina perfeitamente com o dinamismo dos combates.
Itagaki criou um jogo, com sucesso, que clama a atenção do jogador a todo instante.
Não entrarei em detalhes aqui sobre as diferenças entre as versões de Dead or Alive que foram lançadas na época (e acredite, são grandes diferenças). De repente, caso assuntos referentes à franquia sejam de interesse do pessoal, faço um texto dedicado a tal.
Sucesso global
O sucesso de Dead or Alive no Japão garantiu uma consequencial sequência, agora com mais orçamento e confiança de todos os envolvidos (empresa e equipe de desenvolvimento). Assim surgiu o jogo que fez com que Dead or Alive tivesse verdadeiramente os holofotes globais sobre si: Dead or Alive 2.
Novamente rodando em uma placa de arcades da SEGA, agora a poderosa Sega Naomi, Dead or Alive 2 manteve todos os princípios de seu antecessor intactos, melhorando bastante a liberdade de movimentação dos personagens e expandindo o sistema de Hold, se tornando um jogo mais técnico e que demandaria maior dedicação do jogador para masterizá-lo.
Apesar das melhorias acima descritas, as adições que mais chamaram a atenção do público foram o visual do jogo e seus cenários.
Graças ao poder da Sega Naomi, Dead or Alive 2 é um jogo ainda mais belo que a Virtua Fighter 3: Team Battle e a versão de Soul Calibur para arcades, o que naquele momento era algo absolutamente insano.
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Quanto aos cenários, eles são absurdamente interativos, possuindo diversos níveis. Ao longo da luta é possível arremessar, por exemplo, o oponente em uma janela gigantesca dentro de um templo, fazendo a janela se quebrar e o oponente cair na área externa, um andar abaixo, e daí a luta continua nesse novo ambiente. É algo que não envelheceu até hoje e que ainda hoje poucos jogos de luta de outras franquias se meteram a fazer minimamente parecido.
Dead or Alive 2 conseguiu ser um jogo ainda mais sexy do que o primeiro. Mais belo, mais fluído, mais dinâmico e mais técnico. É impossível não ficar hipnotizado com o jogo rodando na sua frente.
As versões do game para Dreamcast e PlayStation 2 mantiveram o alto nível visual e combates frenéticos. Nessas versões foi adicionada a infame opção de informar ao jogo a idade do jogador que só tinha uma função: quanto maior a idade, mais os peitos das lutadoras balançavam. #itagakigenio
A exclusividade para com a Microsoft
A partir da terceira versão de Dead or Alive a franquia passou a ser exclusiva dos consoles Xbox. Dead or Alive 3, 4 e Ultimate (remake de Dead or Alive 2) foram lançados com exclusividade para os consoles da linha Xbox.
Desde o lançamento do primeiro Xbox, Itagaki deixou bem clara a sua predileção em desenvolver jogos para o console e a partir daí, enquanto esteve na Tecmo / Koei Tecmo, todos os jogos encabeçados ele sempre foram exclusivos.
Dead or Alive 3 e 4 são basicamente expansões do que já havia sido fundamentado no segundo game da franquia. São mais belos visualmente, com gameplay mais refinado e com cenários ainda mais incríveis, mas o alicerce da série claramente é Dead or Alive 2.
Infelizmente nenhum dos dois teve o mesmo impacto quanto seus antecessores, apesar de Dead or Alive 3 ter sido um jogo bem vendido no Xbox. O terceiro jogo da franquia foi o jogo de Xbox mais vendido no Japão. Por lá, aproximadamente 46% dos proprietários do console possuíram o jogo.
Pessoalmente, tive mais contato com Dead or Alive 3. Inclusive, nesse jogo se deu a estreia daquele que se tornaria meu personagem principal a ser usado desde então: Brad Wong. Minha predileção com personagens fortes em mix-ups, com um move list gigante, com várias stances e que usa a milenar arte do Drunken Fist, finalmente foi novamente atendida. Até então somente Lei Wulong atendia esses requisitos tão específicos.
Com a conturbada saída de Itagaki da Koei Tecmo em 2008, Dead or Alive voltou a ser uma franquia multiplataforma com Dead or Alive 5, também conhecido como o melhor jogo da franquia até o momento.
Por hora, a defesa encerra
Após essa leitura eu espero que tenha ficado claro o quão Dead or Alive passa longe de ser somente “o jogo de luta das personagens gostosas”. A franquia nasceu e se destacou por seus próprios méritos enquanto um bom jogo de luta, um bom produto de entretenimento eletrônico e sim, da física de peitos saltitantes, mas não exclusivamente.
Espero também que eu tenha conseguido explicar de maneira compreensível o “Triangule system” e o porque desse sistema ter sido a real força motriz do primeiro Dead or Alive ter ganho seu lugar ao sol no hall de franquias de fighting games bem sucedidas.
O próximo texto que trarei sobre Dead or Alive se focará em Dead or Alive 5. Um jogo que apesar de ter tido cinco anos de efetivo suporte da Koei Tecmo e de ter sido reconhecido como um importante representante dos fighting games competitivos de seu período, estando incluso nos principais eventos competitivos do gênero ao redor do mundo (incluindo a EVO), ainda viveu à sombra da fama de jogo simplista e tão somente apelativo sexualmente.